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TRECHOS

– Estava olhando uns arquivos e descobri que meu pai já estava trabalhando nisso e pretendia chamá-la para ajudá-lo.

E ele certamente não estava feliz com aquilo. Se seus lábios crispados e olhar superior diziam algo, era que não a queria ali. Estava acostumada a isso, uma mulher no mundo corporativo causava estranhamento. Sempre supunham que devia abrir as pernas para conseguir as coisas, ou que o tinha feito para conquistar o que já tinha. Não que se importasse. Júlio a tinha preparado para isso, a tinha ensinado a usar as pernas. Suas pernas eram fortes e resistentes porque abrira muitas portas a chutes. Encarou-o, mantendo sua expressão agradável contra a severa dele. Sabia que ele não queria, mas precisava da ajuda dela, ou não estaria ali. Deixou que o silêncio os rodeasse, aguardando, faria qualquer coisa para ajudar seu mentor, inclusive dar seu sangue para que o legado dele sobrevivesse, mas não levantaria uma folha para ajudar ao filho dele. Ele teria que abaixar sua cabeça, nivelar seu nariz ao dela e lhe pedir ajuda.

– Dá próxima vez que for nomear algo, use um numero também.

– Está bem.

Talvez tenha achado alguém mais estranho que ela, pensou, olhando a hora no relógio da cozinha. Certamente alguém que cursa matemática tem um pouco de anormalidade no corpo. Ok, talvez bem mais que um pouco.

– Ela é um achado. _ Se defende. – Se você for estúpido o suficiente para perdê-la, quero que ela saiba que não me importo em ser a segunda opção.

– Não se ofereça a minha namorada tão descaradamente. _ Diz, dando um tapa em seu pescoço.

– Tudo bem, ela não precisa me usar como plano B. Pode ser só para consolo mesmo. _ Recebe outro tapa no pescoço. – Você pode me usar para qualquer coisa.

– Eu vou usá-lo como saco de pancadas se você não parar de cantá-la.

– Parei. _ Diz, levantando as mãos em rendição. – Mas eu gostaria de ressaltar que somos muito parecidos. _ Levanta ao mesmo tempo em que Ricardo. – Todos precisam de um plano B, maninho. _ Corre para fora da cozinha.

– Eu vou parti-lo em A e B, não se preocupe. _ Diz, correndo atrás dele.

Sentou-se, inspecionando o dano do ferimento. Um galho tinha atravessado sua perna, pouco acima de seu tornozelo. Não era muito profundo, se desse sorte, o que obviamente não aconteceria, o ferimento não inflamaria, visto que não tinha nada para lavar ou proteger o machucado. Não que esse fosse o maior de seus problemas, pensou, vendo profundos olhos prateados a encarando. Prendeu a respiração quando o focinho ficou a vista através dos troncos escuros das enormes arvores que cercavam a clareira. Ele cheirou o ar, provavelmente sentindo seu medo, seu desespero, sua quase aceitação da morte iminente, e, então, voltou a encará-la, seus profundos olhos encarando-a com interesse. Quase podia ver inteligência nos prateados. Ficou mais visível, seu comprido corpo passando por entre os grossos troncos, à sua direita. Um pelo negro brilhoso, parecendo muito sedoso, cobria todo o seu corpo. Seus dedos coçaram com a estranha vontade de deslizar entre os fios. Um pouco estranho pensar em acariciar seu executor.

– Eu não tenho um gosto bom. _ Avisou, sem conseguir se conter.

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